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terça-feira, 27 de novembro de 2012

Evolução



É tudo culpa do amor. É ele o óleo que mantém as engrenagens da humanidade girando. É o chute inicial da tecnologia. É o tiro que da a largada da corrida pela perfeição. O amor é a música que embala a festa do mundo, e todo mundo quer achar o seu par para a dança.

Pode ser rico ou pobre. Alto ou baixo. Magro ou gordo. Heterossexual ou homossexual. Não existe classificação. Todos querem alguém para poder contar como foi seu dia ao chegar em casa. Alguém para dividir segredos em noites quentes ao ar livre, e trocar sorrisos depois das piadas sem graça. Alguém para conversar em olhares, e poder brigar quando o outro não conseguir entender. Todos querem achar a sua metade, encher o coração até a borda.

Foi o amor que tirou o primeiro homem de cima da árvore. Não foi a sobrevivência. Ele provavelmente estava à procura de um lugar melhor para sua amada viver, longe da chuva, e perto do chão. A paixão é assim, quando toma conta do corpo, faz qualquer um se entregar as loucuras. Foi o amor que dominou o fogo. Somente um ser apaixonado é capaz de tentar conter algo tão incontrolável.

A sociedade não deixou de ser nômade pelo comodismo. As mulheres estavam com ciúmes. Tinham tanto medo que seus amores tivessem chance de conhecer alguém durante as longas e demoradas viagens de caça, que decidiram cultivar os alimentos no quintal de casa. Para poder colher o amor de seus homens todo o dia.

Gengis Khan queria conquistar o mundo para tentar encher o próprio coração que ninguém conseguia conquistar. Cristóvão Colombo decidiu atravessar o mar para ver se tinha mais sorte nos romances do outro lado. Leonardo da Vinci tentou ganhar o coração da Monalisa com sua pintura, e ela nem se quer se achou parecida. Galileu Galilei olhava para o céu noite e dia tentando achar a melhor combinação para seu signo. Santos Dumont queria saber se a sensação de voar era igual a sensação de estar apaixonado. Einstein formulou a teoria da relatividade ao perceber que o tempo flui diferente perto de quem se ama. Antonio Meucci inventou o telefone para poder falar com sua amada dentro da própria casa, e Thomas Edison aperfeiçoou para tentar diminuir os efeitos da saudade. Neil Armstrong já tinha sido levado pelo amor três vezes para o mundo da lua antes que ele pudesse deixar uma pegada por lá.

Existem teorias que defendem a guerra como a dona dos moldes da humanidade. A grande responsável pelo desenvolvimento tecnológico e social do mundo. Eu sou de idéia oposta. Aposto minhas fichas no amor, ou na falta dele. Quem tem carência de amor, faz de tudo para chamar atenção. Sonha com o poder para tentar conquistar o amor. Quer virar um ídolo, uma obrigação no coração dos outros. A falta do amor faz o ser vivo fazer mais loucuras do que quando ele é consumido em grandes quantidades.

Até podemos fingir que não precisamos de ninguém. Contar pra todo mundo que é bom ser independente, e que não precisa de outra pessoa para ser feliz no amor. E podemos até nos convencer de que isso é realmente verdade. Mas nossa história sempre acaba escrita pela caligrafia do coração.

Não conseguimos evitar, só paramos de procurar quando encontramos. O coração só fica satisfeito quando está cheio. Nossos planos de vida, nossas obsessões, nossos desejos. São todas as nossas linhas traçadas para encontrar alguém que esteja caminhando pelas mesmas regiões no mapa da vida.

Quando encontramos alguém, e essa pessoa também nos encontra. É uma festa, todos os clichês fazem sentido. Parece que os batimentos cardíacos se conectam. Que é magnetismo cósmico. Destino que foi escrito nas estrelas. Comédia romântica de Hollywood. Toda a vida se resume a um ponto, e tudo ganha sentido.

Mas quando a festa acaba. Tudo desaba, a paixão que mantinha o corpo no ar desaparece. As estrelas se transformam em videntes charlatões. Os corações perdem os compassos. Os pólos se invertem e se afastam. A comédia romântica vira drama. E a vida perde o sentido.

Se não houvesse o amor, o coração nunca cairia no chão, mas também não levantaria. Nem antes, e nem depois de cair.

Cronica publicada no dia 27/11/12 no jornal Visão do Vale

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Tipo Sanguíneo


Arte: Helen R Klebesadel, Sacred Spiral.

Não posso doar sangue. Até tentei. Nem o medo da dor da agulha, nem o engarrafamento, e nem o tempo ruim me fizeram desviar o caminho até o hemocentro. Dediquei minha manhã toda para a ida, e todo meu dia anterior para a preparação do organismo.

Respondi os dados da ficha de aptidão com um sorriso no rosto. Quase certo do meu gabarito. Entrei na sala do teste oral com confiança. Com o peso certo. Bem dormido. Mal alimentado da manhã, eu admito, mas essa não era uma informação que precisava vazar à examinadora.

Já estava preparado para a próxima etapa quando descobri um muro entre meu sangue e a seringa. Meus glóbulos vermelhos provavelmente encheriam de vida as veias de outra pessoa. Mas meus glóbulos brancos iriam começar uma guerra contra a tireoide dela. É coisa da genética. Uma tal de tireoidite de Hashimoto.

Somos os chefes do nosso corpo. Mas não temos o controle sobre todos os setores dele. Não posso dizer para meu sangue e minha tireóide pararem de brigar. Esta fora da minha jurisdição. Até entendo, cuidar de todo trabalho pode deixar qualquer um louco. Por isso nosso organismo já vem preparado para fazer o que acha certo.

Me senti como a natureza. Dona da vida e presidente do mundo. Gigante e imponente. Mas impotente para formular as decisões dos vivos. Consegue manter todas as engrenagens do universo funcionando em uma linda harmonia. Mas não tem poder para avisar ao pessoal da faixa de gaza que eles não precisam brigar, Não conseguiu dizer ao homem que escravizar outras vidas é errado. Nem pode convencer a humanidade a parar de se fantasiar de superior.

Pobre natureza. Se fosse tentar doar sangue no hemocentro do universo. Ia descobrir que os glóbulos brancos dela, ao invés de usar toda inteligência que possuem para protegê-la, decidiram atacar os rios, a terra, o ar, e todo ecossistema que ela mantém em funcionamento para que eles possam estar vivos.

Publicado no jornal O Farroupilha em 23/11/2012

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Confissão de Músico


Arte: Virgil Stephens - Fly Me To The Moon

Não escolhi ser artista. Não é tipo de coisa que se escolhe. Acontece. Não sei se é algum dos caminhos prontos no mapa da genética, ou se é parte de alguma grande obra na arquitetura do universo. Não gosto de questionar as origens dos desejos. Aceitei o fato e assumi para o mundo. Sou músico.

Os sinais da arte foram aparecendo aos poucos na minha vida. Começaram com o desejo das mãos de transformar qualquer barulho em percussão, e a vontade dos pés de andar sempre junto ao ritmo. Se manifestaram nas leituras de livros, compulsivas até mesmo nos dias de sol, e na inexplicável vontade de escrever os meus romances. Sempre quis traduzir o mundo com as minhas próprias palavras.

A vontade de subir ao palco começou cedo. Eu não suportava a indiferença dos adultos, sempre concentrados na televisão. Eu queria fazer arte ao vivo. Empurrava a cadeira para frente da televisão e a transformava em palco, fazia da sala o meu teatro. Eu atuava filmes. Cantava músicas. Declamava comerciais. Era a atração principal da noite até que a programação da hora recomeçasse para roubar a minha cena.

Quando isso acontecia, eu abandonava o palco, e ia desenhar. O papel e a caneta sempre foram dois dos meus grandes amigos. Posso me divertir por horas toda vez que nos encontramos juntos.

A arte é maravilhosa. Tem o poder de redesenhar o mundo. Ligar os pontos perdidos. Destacar os traços nos muros e sublinhar partes da natureza. Sempre adorei transformar a vida numa pintura. Eu até ficava satisfeito em guardar a arte final só para mim. Reservar a minha interpretação da vida. Mas expor o quadro, e mostrar para quem quiser ver, é o verdadeiro sentido de pintar o mundo.

Artista não consegue segurar as coisas dentro do peito. Quando o coração transborda, nasce a arte. Os sons, as imagens, e as palavras são os vazamentos do coração. As molduras para os sentimentos. São fugas.

Cada artista usa as ferramentas que mais gosta para construir os túneis que aliviam a pressão no coração. A minha acabou sendo a união da música e das palavras. Não são artes que necessitam uma da outra para existir. Mas eu adoro essa mistura. Criar a trilha sonora para a escrita, e traduzir os sons em letras

A música sempre me envolveu. Ela me fascina. Ela é tão pequena. Guardada entre um dó e outro. E mesmo assim, é infinita. Está toda dentro da prisão dos instrumentos. É só transformar os dedos em chaves, e abrir as celas das notas para que a música se faça.

Meu primeiro romance com o violão não deu certo. Eu quis apressar as coisas, e na falta da coordenação motora da infância, derrubei ele no chão. Ele ficou com o braço partido, e eu com o coração. Mas a vida deu um jeito de nos reapresentar. Eu o procurei anos mais tarde, e ele me recebeu de braços abertos. Somos grandes amigos e ótimos parceiros de composição até hoje.

Foi ele quem me ajudou a musicar minhas letras escritas na infância. Que me ajudou a achar a diversão nos dias monótonos. Que me consolou nos romances. Que me fez acalmar os ânimos. Que escutou os meus lamentos da adolescência. Que traduziu minha alegria. Que revelou meus segredos. Que continua comigo mesmo eu nunca dividindo o cachê com ele.

Eu até tentei me desviar. Pensei em estudar medicina. Quem sabe ser professor, ou até bioquímico. Qualquer coisa que me afastasse da arte. Mas não consegui, sempre foi mais forte que eu. E um dia precisei assumir para os meus pais.

Nunca é fácil. Poucos pais querem ouvir estas palavras de um filho. Afinal, por que a musica? Por que não escolher uma opção que já vem pronta? Uma opção lapidada em uma faculdade, passada de geração para geração. Fazer engenharia, ou medicina. Ser padeiro, ou arquiteto. Trabalhar em horas normais. Ter um chefe. Alguém que grite com você. E alguém para passar adiante o grito.

Eu entendo a preocupação. Todo mundo sabe que ter o próprio coração como chefe, é muita exigência no trabalho. Mas acabei tendo sorte. Meus pais me compreenderam e decidiram me apoiar na decisão. Hoje sou um músico feliz, sem medo de assumir a música na minha vida.

Publicado no jornal Visão do Vale em 20/11/2012

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Desamor


Arte: Desamor - Adela  Casado

O amor não foge discretamente. Não consegue sair de fininho pela porta dos fundos e fingir que nunca esteve ali. Amor não sabe andar nas pontas dos pés. É atrapalhado, sempre quebra os vasos e derruba panelas antes de chegar à saída. Liga a luz sem querer, e acorda quem está no quarto para avisar que está indo embora.

Não existe vitória quando o jogo do amor acabada. Todo mundo perde. Todo mundo vira culpado. Não tem como fugir da pena. Pelo menos algum tempo em carcerário na cela dos sentimentos por outra pessoa ainda será necessário para voltar à liberdade.

Quem perde o amor primeiro, sofre por antecedência, sente saudades do que não vai mais ter. Culpa o próprio coração por não amar mais o outro. Faz de tudo para que o amor não desapareça. Busca por ele na memória. Tenta encontrar traços dele nos sorrisos da outra pessoa. Tenta se reinventar.

É como ir a um ótimo restaurante. E no meio da refeição, perder a fome. Pedir para ir embora enquanto o outro ainda está saboreando a comida.

Quem descobre que o amor da outra metade fugiu. Luta contra as forças da natureza para se manter no chão. Levanta suspeita. Leva o acusado ao tribunal, e não espera a sentença do juiz. Joga tudo na mesa. Precisa encontrar a saída sem ter chego ao final.

Não existe apagador. Quando o amor vai embora. Esquece de levar as lembranças. Deixa as fotos espalhadas nos porta-retratos. As palavras escritas nos cartões. Os perfumes fixados nas roupas. Os passeios de domingo na memória. E a intimidade marcada numa mancha invisível em cada lugar que ela já tocou.

Todo mundo sofre. Quem precisa esquecer, e quem não quer esquecer. Quem se preocupa e quem finge que não se preocupa. Quem é vilão, e quem é mocinho.

Perder o amor é pior do que perder carteira de identidade. A burocracia para conseguir um novo é complicada e lenta. Precisa de tempo. Paciência. E lágrimas. Mas assim como a chance de conseguir um foto 3x4 melhor que a anterior, é uma boa chance para sentir a alegria da paixão novamente.

Crônica publicada no jornal O Farroupilha no dia 16/11/12

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Mudança


Vista aérea do morro Dois Irmão e Pedra da Gávea no Rio de Janeiro - Wendell Well

Esvaziar armários e encher caixas não é tarefa fácil para o coração. É uma renuncia forçada de toda história que deixamos acumulada junto com o pó dentro das nossas gavetas. Escolher quais dos pequenos tesouros devem continuar na família de tralhas e entulhos é um grande exercício para o desapego. É como transformar o passado em duas pilhas, uma para levar ao futuro, e outra para enviar para qualquer direção oposta.

Me lembro da minha primeira mudança. Era ainda muito criança para querer separar minhas preciosas tralhas, queria levar as gavetas inteiras para a nova casa. Mudar o mesmo quarto para um novo endereço. Minha maior preocupação era na verdade com os amigos. Quando somos crianças, somos obrigados a ter amigos que façam parte da nossa rotina. E eu tinha a tristeza de saber que os metros que uniam os laços de amizade entre eu e os meus amigos do bairro iriam se alargar e afrouxar junto com a distância que separaria nossas casas. Mas também sabia que o novo endereço era um ótimo pretexto para conhecer novos candidatos ao posto.

Talvez seja por isso que sempre me animei com as mudanças. Espero o novo como a fome espera a janta. Sou otimista. Gosto da sensação de desconforto da novidade. Gosto de descobrir. Tirar as peças de roupa para encontrar a pele. Me impressionar com cada pinta e mancha que eu ainda não conhecia.

A mudança é sempre uma chance de abrir novos espaços no coração. Esvaziar os armários, é permitir que novas vidas possam ganhar valor. Minha ultima mudança começou há alguns meses. Já não era mais criança e precisei limpar todas as minhas gavetas. Separei os meus tesouros. Reciclei o passado. Joguei fora o que não seria útil para ninguém, doei o que poderia encher as gavetas de alguém, e segurei tudo que eu ainda sei dar utilidade.

Dessa vez, não botei nada dentro de caixas. Não empacotei com plástico-bolha nenhum objeto. E nem me preocupei com os amigos, já aprendi que existe amizade que nem a distância afasta. Me resumi em apenas uma mala e um violão. Queria poder trazer mais, e fiquei feliz ao saber que o coração comporta muito mais do que os 23 quilos de bagagem permitidos pelo avião.

Depois de um bom tempo me mudando para quartos provisórios, finalmente estou deitado no meu colchão, no chão da sala do meu novo lar. Tenho o morro Dois Irmãos de pé do outro lado da janela, e as orlas do Leblon e de Ipanema deitadas lá em baixo, na beira do mar, tomando banho de sol e enfeitando o infinito de água salgada. Morava no alto da serra gaúcha, agora moro no alto do morro do Vidigal. Coincidência que provavelmente meu subconsciente fez força para acontecer.

Me sinto como quando era criança, na primeira mudança. O colchão no chão e a casa vazia. Esperando para ser preenchida com uma vida nova. Os interruptores me fazendo de bobo, trocando toda hora as próprias conexões elétricas só para me ver errar. A caixa térmica brincando de refrigerador, e a torradeira fingindo ser fogão. Toda mudança é igual. A casa nunca está pronta no momento em que você entra nela. É preciso encher com o presente, e acumular novas histórias.

Fico imaginando a intimidade que os antigos moradores tinham com as paredes e o piso. Qual será a soma de dedinhos do pé que já se chocaram nos cantos das portas desde o primeiro morador? Quantas brigas já começaram e já terminaram dentro dessas paredes? Quantos casos de amor aconteceram em baixo desse teto? Será que alguém deu os primeiros passos aqui? Quem escolheu a poesia que está escrita na parede?

Mesmo que pudessem, as paredes não contariam. Não por serem leais aos antigos moradores. Mas por serem leais aos novos. Somos nós que fazemos o lar, não é o lar que nos faz.

É como conhecer alguém novo. Nunca saberemos quantas vezes um sorriso apareceu nos lábios dessa pessoa, nem quantas lágrimas ela já derramou. Por mais que a nossa curiosidade insista no passado. As gavetas já foram limpas, já serviram para moldar o presente. E se somos o presente. É nossa função encher o coração de novas lembranças.

Crônica publicada no jornal Visão do Vale em 13/11/2012

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Samba


 Maneco Araújo - Favela da Rocinha

Não existem barreiras para quem sabe gingar.

Quem tem molejo nos pés não perde o charme nem quando tropeça. Transforma o esbarro em passo de dança. Faz do choro um riso. E do riso uma alegria.

As paredes descascadas e sujas da cidade são molduras aos olhos de quem tem o suingue nas mãos. Os muros de concreto, os pilares dos viadutos, qualquer coisa que pareça transformar a vida em uma caixa de tijolos ganha cores e vida no grafite dos dançarinos da vida moderna.

Se o mundo canta, damos um jeito de inventar uma dança. É a resposta da vida.

Tente tocar uma música para alguém. Se essa pessoa não mexer nem ao menos um dedo da mão no ritmo. É porque toda a concentração dela esta sendo dedicada a ignorar a própria vontade. Dançar é involuntário, é o nosso corpo tentando traduzir o coração.

Se os preços no mercado aumentam, rebolamos. Refazemos as contas, chamamos os números para a pista, e giramos com eles de um lado para o outro. Treinamos os passos para que fiquem confortáveis novamente.

O problema é quando a música muda antes que todos os bailarinos aprendam a coreografia. Aí a dança é diferente. Vira improviso. Vira casa no meio do morro. Vira conjugado e sobradinho. Vira esgoto a céu aberto e lixo espalhado na esquina. Vira gato de luz no poste e ladeira no quintal de casa.

Se dançar é involuntário. Talvez o problema esteja na banda. Afinal, ninguém consegue dançar essa música sem ritmo que insistem em tocar. Essa música que entre um compasso e outro, os maestros acrescentam um tempo a mais para receber a propina dos músicos.

Ainda bem que o público é bom de gingado. Consegue dar um jeito de se manter na pista de dança. O que me surpreende na verdade, é que quem assiste ao show sentado no mezanino, reclama mais da dança confusa do povo, do que da música mal tocada da banda.

Crônica publicada no jornal O Farroupilha em 9 de novembro de 2012

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Epitáfio


Dia de los muertos - Thaneeya McArdle

A morte é séria de mais. Basta ela entrar no assunto, que todo mundo fecha a cara.

Não existe espaço para a felicidade perto da cova. Qualquer traço dela é condenado quando a palavra morte aparece na receita da vida. Não importa se ela vem dos bons momentos que a vida deu, dar risada em um velório é quase um crime. Ofende as lágrimas de quem prevê um futuro sem a vida de quem já viveu.

Não gosto dessa cordialidade toda. O terno e gravata do enterro deveriam ser substituídos por um nariz de palhaço. A morte nunca deveria ter sido levada tão a sério. Não entendo como ela acabou sendo mais respeitada que a vida.

Transformamos a vida em comum e a morte em sagrada. Botamos a morte em um pilar, e jogamos a vida numa vala. Maltratamos a vida e cuidamos com todo carinho da morte.

A morte virou nossa maior obsessão. Comemos errado e com exagero, para tentar entupir artérias. Enchemos nosso corpo com tóxicos para confundir o cérebro. Trabalhos mais do que descansamos, para conseguir dar às pessoas um testamento maior do que a nossa memória. Usamos motores e máquinas, para evitar que nosso corpo se canse antes do tempo. Nos preocupamos sem limites, e amamos com receio.

Começamos uma guerra contra o tempo e a natureza para fugir da morte, e acabamos nos tornando os maiores aliados dela. Somos nosso próprio arqui-inimigo. Afinal, já que nós conseguimos subir ao topo da cadeia alimentar, é nosso dever perante a natureza, dar um jeito em nós mesmos.

Não estou fazendo pouco da morte. Sei que saudades é coisa séria. Mas a saudades só existe por causa da vida.

É como se suicidar para ver se alguém vai chorar no nosso velório, em vez de amar para ver se alguém vai comemorar junto nas nossas conquistas.

Em algum momento da história da humanidade, morrer virou mais nobre do que viver.

O epitáfio deveria zombar dos nossos defeitos, em vez de engrandecer nossas vaidades.

Crônica publicada no jornal O Farroupilha no dia 01/11/2012