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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Carnaval de Rua




Não existe espaço para o preconceito no carnaval. Não adianta tentar, ele não cabe entre os confetes e a purpurina. Não consegue se encaixar entre a caixa e o bumbo da bateria. Ele se perde antes mesmo de virar a esquina com o bloco.

Carnaval é democracia. É a festa da rua. Não existe área vip. Não precisa pagar ingresso. Mas quem quiser entrar pra dança tem que rebolar.

O médico pode ser o mendigo. O jardineiro pode ser um rei. A empregada pode ser uma enfermeira. E o malandro pode ser o padre. Na folia não existe hierarquia. Ninguém é melhor que ninguém.

Todo mundo segue o mesmo balanço. O suor de um é suor de todos. O passo de um é o passo de todos. O coro é um só, e a alegria é geral. Felicidade compartilhada.

Dizem que carnaval é coisa de vadio. Que mentira, carnaval é coisa de família. Coisa de jovem. Coisa de mulher, de homem, de homossexual. Carnaval é festa pra malandro sim, mas também é festa pra santo. É festa pra quem quer soltar a voz. Pra quem quer dançar. Pra quem quer sentir o ritmo da percussão tremer o asfalto.

É verdade. Que por alguns dias o Brasil se esquece de reclamar da política. Que o número de acidentes aumenta. E que muitos problemas com drogas e bebidas acontecem.

Mas o carnaval é o maior exemplo de união que eu já vi. É a igualdade desfilando num único abraço entre foliões desconhecidos.

Num país tão desigual e tão cheio de problemas sociais. Num país com tantos movimentos culturais diferentes e tantas etnias. É uma maravilha ver um evento onde a diferença fica de fora, e dá lugar a alegria.

Tem que diga que o carnaval é uma vergonha para o Brasil. Que exporta para o resto do mundo a nossa falta de pudor. Eu vejo o carnaval como um orgulho. Exporta para todo mundo a nossa alegria e toda nossa falta de preconceito.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Enchente


foto: Antonio Dal Bó

Sempre gostei de água. Era o tempero para alegrar qualquer uma das minhas brincadeiras da infância. Não podia ver uma torneira que meus dedos coçavam. Arrumava pretexto para poder ligar a mangueira no jardim, e quando ninguém estivesse olhando, eu jogava água para cima. Adorava me molhar.

Admito que nem sempre gostei de banho. Mas se eu tivesse um chuveirinho, o banho virava revista em quadrinhos. Eu ganhava o super poder de controlar a água, me transformava em um super herói.

Mas água não é coisa controlável. Não adianta pedir por favor. Ela não faz uso dos bons modos. Quando ela quer passar, não pede licença.

Há alguns dias atrás, eu voltava de um ensaio perto do Maracanã junto com quatro amigos, quando o sol fugiu junto com a tarde quente do Rio de Janeiro, e deixou a chuva brincar com os rios que cruzam o bairro.

A água não tinha para onde fugir, e muito menos nós, que fomos pegos de surpresa no meio da enchente. Nos vimos obrigados a abandonar o carro, e a carregar os instrumentos em cima da cabeça.

Me lembrei de como achava a água da mangueira maleável em minhas mãos, e percebi o quão maleável todos nós éramos no rio de sacolas plásticas e sujeira que subiu até a altura das maçanetas do carro.

Eu estava caminhando pelo novo rio que brotou ao lado do Maracanã, tateando buracos com os pés, quando uma moradora de rua me ofereceu abrigo em seu lar, junto com os outros diversos moradores de rua que também viviam em baixo daquele viaduto. Eles nos ajudaram, e ao me verem tremendo de frio, me ofereceram uma camiseta seca.

O rio subiu mais. E tivemos que abandonar o abrigo do viaduto para subir mais também. Quando tudo passou voltei para ver como todos estavam. Eles haviam conseguindo salvar muito do pouco que tinham. E me pediram se todos nós estávamos bem. Saí de lá recebendo desejos de benção e amor de quem quase nunca recebe benção e amor.

Nada pode parar uma enchente. Ainda bem que o amor é como a água, quando transborda, leva tudo que estiver pelo caminho.

Publicado no jornal O Farroupilha em 08/02/2013

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Na Foto


Arte: Oliver Ray

Somente as crianças são sinceras. Basta olhar o álbum de fotografias.

Criança não finge sorriso pra sair bem na foto. Não pensa em fantasiar futuras intimidades com aquele milésimo de segundo registrado para a eternidade.

Se ela esta triste, vai sair fazendo bico. Vai manter a cara amarrada. Os olhos cheios de lágrimas e as bochechas vermelhas.

Se ela esta feliz, vai sair com o olho brilhando. Sorriso banguela. Com cara de quem faz arte e se diverte com o momento.

Criança não faz pose de modelo. Não ajeita o cabelo. Não pede pra bater a foto de novo porque saiu de olho fechado. Criança é natural. A única maquiagem que quer usar é a do próprio humor.

Eu moro no Rio de Janeiro. É normal ser chamado para bater foto para alguém na rua em algum lugar turístico. Sempre aceito. Gosto de poder registrar a tentativa que as famílias fazem para transformar as férias em um comercial de margarina.

As mães sempre se esforçam. Botam um sorriso estático no rosto e brigam com os filhos entre os dentes. O filho acostumado desfaz a careta, sabe que nunca vencerá dessa maneira. Ele espera o momento certo, e quando a mãe olha para a câmera, sua careta vira registro fotográfico na frente da praia de Ipanema.

Em vez de ensinarmos as crianças a fingir. Deveríamos aprender a nos expor como elas

Crianças não disfarçam os medos. Não maquiam as tristezas. Não escondem as inseguranças. E muito menos a felicidade.

Criança não tem medo de perguntar. Não tem medo de parecer ignorante. Não tem medo de não agradar.

Criança não tem vergonha de chorar na rua. De gargalhar em igreja. Nem de dizer que a comida está ruim.

Criança não finge em fotografias porque não finge na vida.

Publicado no jornal O Farroupilha no dia 01 de fevereiro

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Continua...


Dedicado em memória de David Olivo.

A terra continua girando
O tempo continua seguindo
A noite continua viva

Nenhuma onda deixou de quebrar
Nenhum pingo não tocou o chão
Nenhuma árvore trocou de lugar

A lua não apagou de repente
O vento não parou de soprar
O ciclo das marés continua inalterado

O transito segue normalmente na orla do Leblon
As luzes continuam brilhando em Ipanema
Os moto-taxis não deixaram de subir e descer a rua do Vidigal

Ninguém diminuiu o passo no calçadão
Ninguém parou de sorrir no bar
Ninguém tossiu envergonhado nas escadarias

Mas um mundo acabou.

Um mundo deixou de respirar
Um mundo deixou de pulsar
Um mundo deixou de sonhar

Um mundo que nasceu filho
Que virou amor, virou pai, virou avô
Um mundo que se espalhou

Um mundo finito virou infinito
Um mundo mortal virou imortal
Um mundo eterno

O mundo é tão grande para um mundo tão pequeno
Ah! Mas que grande diferença faz um pequeno mundo!
Vira um mundo inteiro em todos que o aprendem.

Nenhum terremoto abriu o chão
Nenhuma enchente alagou a cidade
Nenhuma erupção cobriu as montanhas

Mas meu mundo tremeu
Meu mundo chorou
Meu mundo se cobriu de saudades

A vida continua levando a vida
A vida continua levando
A vida continua...