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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Curriculum Vitae


Evolution of Man With Umbrella, Uri Dushy, 2005

Já descobri que o fogo queima. E que o que eu encontro no chão não deve ser botado na boca. Aprendi que tem que olhar para os dois lados antes de atravessar a rua. Que tênis apertado machuca o pé. E a não nadar durante a digestão. Aprendi que cabelo molhado não combina com vento, mas que na praia isso vira exceção.

Já aprendi a ler e escrever.

Já aprendi a caminhar, e já pisei em chiclete derretido. Já aprendi as operações de matemática, e já recebi o troco errado. Já aprendi as leis de Newton, e já testei as leis de Newton. Já aprendi da onde vem os bebes, e já aprendi como se fazem bebes.

Já ganhei medalhas. Já ganhei pontos em machucados. Já quebrei o nariz. Já quebrei o dente. Já me esqueci de um compromisso. Já tirei nota vermelha. Já me esqueci de tirar toda roupa antes de tomar banho. Já entrei no banho de óculos. Já descobri que nem todo relógio a prova de água é realmente a prova de água. Já encontrei um real no chão
Já escondi um objeto quebrado. Já parti um coração.

Já quebrei um violão, e já concertei o violão. Já perdi uma lente de contato, e já encontrei a lente de contato. Já descobri que ninguém sabe nada sobre o amor, e já ignorei que todo mundo sabe tudo sobre o amor. Já entendi o não escondido no sim, e já entendi o sim escondido no não. Já formulei teorias pra acabar com os problemas do mundo, e já aprendi a dançar. Já me apaixonei, e já me re-apaixonei. Já passei a noite em claro conversando, e já dormi no meio de uma conversa. Já fiz amigos. Já perdi amigos. Já falei a coisa certa na hora errada. Já falei a coisa errada na hora certa

Já ri. Já chorei. Já senti agonia. Já senti saudades. Já amei. Já senti dor. Já senti alívio. Já senti prazer.

Hoje faz 23 anos desde que aprendi a respirar, e já aprendi que não sei quase nada.

Publicado no jornal O Farroupilha no dia 26/10/2012

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Sem Título


Untitled II - Fabian Perez

Sempre me demoro nos títulos. Acho muito complicado resumir as idéias em tão poucas palavras. É como etiquetar um produto. Estragar a surpresa. Botar um ponto cardeal no texto para o leitor tomar um rumo para a própria interpretação.

Mas a verdade é que nos tornamos relaxados, preguiçosos. Viciados na melhor publicidade. Acostumados a comprar em letras garrafais. Nos tornamos consumidores da foto do fast food, e não da receita. Procuramos primeiro o título para julgar se o produto vale à pena ou não.

Botamos títulos até mesmo nas pessoas. Transformamos eles nas nossas identidades. São os crachás que nos separam nas diferentes estantes do mundo. Catalogados em sessões de profissão, nacionalidade, classe social, religião, raça e estilo.

Essa insistência no rótulo não vem do berço. Ela cresce junto com os aniversários e vai engrossando ao mesmo tempo que a voz. Nascemos livres, mas o mundo sempre pede o nome das nossas ideias.

Os professores nos ajudam a ficar assim. Começam a matéria nova pelo nome, e ainda pedem para sublinhá-lo no topo da explicação. Na redação, eles descontam nota dos alunos que esquecem do título. Quando é de vestibular, o aluno pode até ficar de fora do listão por causa disso.

Se fosse eu, daria ponto extra. Quem esquece o título tem sede de saber mais. É curioso. Não aprendeu a pintar dentro das linhas. Não faz cara feia antes de provar, quer saber os ingredientes.

Quem esquece o título não julga pela cara, cor, classe social, aparência, estilo, ou profissão. Não compra o amor em outdoors, nem se relaciona entre grifes.

Só quem esquece o título tem o coração aberto para amar por fora dos limites.


Crônica publicada no jornal O Farroupilha no dia 19/10/2012

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Gente Grande


Nagbibinata means a boy growing up - Toti Cerda

Eu comecei a envelhecer cedo. O tempo nunca me deixou escolha, eu precisei aprender a respirar. E de lá para cá, nunca parei de somar segundos.

Mal sábia engatinhar e tive que balancear o peso da vida em cima dos pés. Assumir a responsabilidade de carregar a mim mesmo nos meus passos pela sala.

Em pouco tempo tinha transformado os resmungos em palavras. As palavras em perguntas. E as perguntas em respostas. Queria saber de onde vinham os bebês. Entender as conversas dos adultos e poder rir junto com as piadas deles.

Eu abandonei o bico, e decidi que não iria mais comer sopa. Queria morder e mastigar. Eu precisava testar meus dentes novos. Comer comida de gente grande.

Troquei as fraldas pela cueca. Aprendi a usar o vaso. Comecei a ler e escrever. Aprendi a jogar vídeo game. E descobri que o Papai Noel era outra pessoa que nem barba tinha.  

O tempo foi passando, e quando eu vi, já estava medindo mais que a minha avó. Ela sempre foi a régua na família que media o crescimento dos netos. Passar dela em altura era a nossa conquista. A prova de que já éramos grandes. Mesmo sendo pequenos.

Eu queria ser grande. Queria ficar acordado no sofá com a família e não perder o melhor da conversa. Queria decidir a hora de sair. Queria dirigir e ir para todos os lugares que as pessoas grandes podiam ir.

Eu fazia planos para a minha futura altura. Criava motivos para atingir a maturidade. Sonhava com o dia em que eu fosse levado a sério do jeito que só um adulto com cara séria consegue ser.

Agora tenho pêlos, barba, responsabilidades e contas pra pagar. E sou muito feliz de ser gente grande. Não porque posso dormir a hora que quiser. Mas porque sou feliz de ser o cara grande que a criança pequena queria ser.

Ainda sonho. Ainda faço arte. Ainda tenho o mesmo sorriso maroto e ainda dou risada assistindo desenhos animados.

Se aquele menino que queria salvar o mundo me visse hoje, ele ia ficar feliz de saber que ainda não desisti de tentar.

Feliz dia das crianças para todos os pequenos.  E não se esqueçam de vocês mesmos quando virarem gente grande. 

Crônica publicada no jornal O Farroupilha no dia 11/10/2012

sábado, 6 de outubro de 2012

Na pressão

Siesmic Stress - Steven Holder


Estresse não é moda. É estilo de vida. É a saudade que o ser humano sente da vida selvagem. O vício pela adrenalina. A vontade de superar os obstáculos que a rotina enterrou.

O despertador pode até funcionar na hora marcada, mas a manhã não teria graça sem os 15 minutos extras de sono que transformam o banho quente em ducha fria, e o café da manhã nutritivo em café preto sem açúcar. É a preparação que a mente necessita para deixar claro que o conforto ainda tem traços da selva.

Sair para trabalhar é quase uma caçada, O transito é uma corrida pela própria vida, e o trabalho é o predador. Quem ficar para trás é devorado quando chegar.

Estamos sempre deixando para o último minuto. Não é preguiça. Preguiça é fazer logo só para depois relaxar. Gostamos mesmo é de acumular serviço. Gostamos de ver os trabalhos se empilharem, e de como eles são mais eficientes do que cafeína para evitar o sono. Especialmente quando estão perto dos prazos finais. Gostamos da pressão.

Estresse é carência. É usar o telefone celular no meio da rua para dizer que não tem tempo para conversar. É subir num avião, fazer mais de mil quilômetros em 2 horas, e reclamar do atraso de 10 minutos na hora de embarcar. É contar os minutos para sair do trabalho, chegar em casa e reclamar do dia. É contar as horas para sair de casa, chegar ao trabalho e reclamar da família.

O estressado não quer dividir soluções. Quer somar problemas. E quer que outras pessoas sejam solidárias ao seu estresse. O estressado não faz ideia do seu próprio tamanho perante o universo.

Estresse é egocentrismo. É a vontade de parecer importante ao transformar o cotidiano em problema. Estresse é doença sim. Mas provavelmente, a maior causa do estresse não seja o dia a dia, mas na verdade, a falta de um bom abraço apertado.


Cronica publicada no jornal O Farroupilha no dia 05/10/12