Arte: Helen R Klebesadel, Sacred Spiral.
Não posso doar sangue. Até tentei. Nem o medo da dor da
agulha, nem o engarrafamento, e nem o tempo ruim me fizeram desviar o caminho
até o hemocentro. Dediquei minha manhã toda para a ida, e todo meu dia anterior
para a preparação do organismo.
Respondi os dados da ficha de aptidão com um sorriso no
rosto. Quase certo do meu gabarito. Entrei na sala do teste oral com confiança.
Com o peso certo. Bem dormido. Mal alimentado da manhã, eu admito, mas essa não
era uma informação que precisava vazar à examinadora.
Já estava preparado para a próxima etapa quando descobri um
muro entre meu sangue e a seringa. Meus glóbulos vermelhos provavelmente
encheriam de vida as veias de outra pessoa. Mas meus glóbulos brancos iriam
começar uma guerra contra a tireoide dela. É coisa da genética. Uma tal de
tireoidite de Hashimoto.
Somos os chefes do nosso corpo. Mas não temos o controle
sobre todos os setores dele. Não posso dizer para meu sangue e minha tireóide
pararem de brigar. Esta fora da minha jurisdição. Até entendo, cuidar de todo
trabalho pode deixar qualquer um louco. Por isso nosso organismo já vem
preparado para fazer o que acha certo.
Me senti como a natureza. Dona da vida e presidente do mundo.
Gigante e imponente. Mas impotente para formular as decisões dos vivos. Consegue
manter todas as engrenagens do universo funcionando em uma linda harmonia. Mas
não tem poder para avisar ao pessoal da faixa de gaza que eles não precisam
brigar, Não conseguiu dizer ao homem que escravizar outras vidas é errado. Nem
pode convencer a humanidade a parar de se fantasiar de superior.
Pobre natureza. Se fosse tentar doar sangue no hemocentro do
universo. Ia descobrir que os glóbulos brancos dela, ao invés de usar toda
inteligência que possuem para protegê-la, decidiram atacar os rios, a terra, o
ar, e todo ecossistema que ela mantém em funcionamento para que eles possam estar vivos.
Publicado no jornal O Farroupilha em 23/11/2012
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