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sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Tipo Sanguíneo


Arte: Helen R Klebesadel, Sacred Spiral.

Não posso doar sangue. Até tentei. Nem o medo da dor da agulha, nem o engarrafamento, e nem o tempo ruim me fizeram desviar o caminho até o hemocentro. Dediquei minha manhã toda para a ida, e todo meu dia anterior para a preparação do organismo.

Respondi os dados da ficha de aptidão com um sorriso no rosto. Quase certo do meu gabarito. Entrei na sala do teste oral com confiança. Com o peso certo. Bem dormido. Mal alimentado da manhã, eu admito, mas essa não era uma informação que precisava vazar à examinadora.

Já estava preparado para a próxima etapa quando descobri um muro entre meu sangue e a seringa. Meus glóbulos vermelhos provavelmente encheriam de vida as veias de outra pessoa. Mas meus glóbulos brancos iriam começar uma guerra contra a tireoide dela. É coisa da genética. Uma tal de tireoidite de Hashimoto.

Somos os chefes do nosso corpo. Mas não temos o controle sobre todos os setores dele. Não posso dizer para meu sangue e minha tireóide pararem de brigar. Esta fora da minha jurisdição. Até entendo, cuidar de todo trabalho pode deixar qualquer um louco. Por isso nosso organismo já vem preparado para fazer o que acha certo.

Me senti como a natureza. Dona da vida e presidente do mundo. Gigante e imponente. Mas impotente para formular as decisões dos vivos. Consegue manter todas as engrenagens do universo funcionando em uma linda harmonia. Mas não tem poder para avisar ao pessoal da faixa de gaza que eles não precisam brigar, Não conseguiu dizer ao homem que escravizar outras vidas é errado. Nem pode convencer a humanidade a parar de se fantasiar de superior.

Pobre natureza. Se fosse tentar doar sangue no hemocentro do universo. Ia descobrir que os glóbulos brancos dela, ao invés de usar toda inteligência que possuem para protegê-la, decidiram atacar os rios, a terra, o ar, e todo ecossistema que ela mantém em funcionamento para que eles possam estar vivos.

Publicado no jornal O Farroupilha em 23/11/2012

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