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terça-feira, 20 de novembro de 2012

Confissão de Músico


Arte: Virgil Stephens - Fly Me To The Moon

Não escolhi ser artista. Não é tipo de coisa que se escolhe. Acontece. Não sei se é algum dos caminhos prontos no mapa da genética, ou se é parte de alguma grande obra na arquitetura do universo. Não gosto de questionar as origens dos desejos. Aceitei o fato e assumi para o mundo. Sou músico.

Os sinais da arte foram aparecendo aos poucos na minha vida. Começaram com o desejo das mãos de transformar qualquer barulho em percussão, e a vontade dos pés de andar sempre junto ao ritmo. Se manifestaram nas leituras de livros, compulsivas até mesmo nos dias de sol, e na inexplicável vontade de escrever os meus romances. Sempre quis traduzir o mundo com as minhas próprias palavras.

A vontade de subir ao palco começou cedo. Eu não suportava a indiferença dos adultos, sempre concentrados na televisão. Eu queria fazer arte ao vivo. Empurrava a cadeira para frente da televisão e a transformava em palco, fazia da sala o meu teatro. Eu atuava filmes. Cantava músicas. Declamava comerciais. Era a atração principal da noite até que a programação da hora recomeçasse para roubar a minha cena.

Quando isso acontecia, eu abandonava o palco, e ia desenhar. O papel e a caneta sempre foram dois dos meus grandes amigos. Posso me divertir por horas toda vez que nos encontramos juntos.

A arte é maravilhosa. Tem o poder de redesenhar o mundo. Ligar os pontos perdidos. Destacar os traços nos muros e sublinhar partes da natureza. Sempre adorei transformar a vida numa pintura. Eu até ficava satisfeito em guardar a arte final só para mim. Reservar a minha interpretação da vida. Mas expor o quadro, e mostrar para quem quiser ver, é o verdadeiro sentido de pintar o mundo.

Artista não consegue segurar as coisas dentro do peito. Quando o coração transborda, nasce a arte. Os sons, as imagens, e as palavras são os vazamentos do coração. As molduras para os sentimentos. São fugas.

Cada artista usa as ferramentas que mais gosta para construir os túneis que aliviam a pressão no coração. A minha acabou sendo a união da música e das palavras. Não são artes que necessitam uma da outra para existir. Mas eu adoro essa mistura. Criar a trilha sonora para a escrita, e traduzir os sons em letras

A música sempre me envolveu. Ela me fascina. Ela é tão pequena. Guardada entre um dó e outro. E mesmo assim, é infinita. Está toda dentro da prisão dos instrumentos. É só transformar os dedos em chaves, e abrir as celas das notas para que a música se faça.

Meu primeiro romance com o violão não deu certo. Eu quis apressar as coisas, e na falta da coordenação motora da infância, derrubei ele no chão. Ele ficou com o braço partido, e eu com o coração. Mas a vida deu um jeito de nos reapresentar. Eu o procurei anos mais tarde, e ele me recebeu de braços abertos. Somos grandes amigos e ótimos parceiros de composição até hoje.

Foi ele quem me ajudou a musicar minhas letras escritas na infância. Que me ajudou a achar a diversão nos dias monótonos. Que me consolou nos romances. Que me fez acalmar os ânimos. Que escutou os meus lamentos da adolescência. Que traduziu minha alegria. Que revelou meus segredos. Que continua comigo mesmo eu nunca dividindo o cachê com ele.

Eu até tentei me desviar. Pensei em estudar medicina. Quem sabe ser professor, ou até bioquímico. Qualquer coisa que me afastasse da arte. Mas não consegui, sempre foi mais forte que eu. E um dia precisei assumir para os meus pais.

Nunca é fácil. Poucos pais querem ouvir estas palavras de um filho. Afinal, por que a musica? Por que não escolher uma opção que já vem pronta? Uma opção lapidada em uma faculdade, passada de geração para geração. Fazer engenharia, ou medicina. Ser padeiro, ou arquiteto. Trabalhar em horas normais. Ter um chefe. Alguém que grite com você. E alguém para passar adiante o grito.

Eu entendo a preocupação. Todo mundo sabe que ter o próprio coração como chefe, é muita exigência no trabalho. Mas acabei tendo sorte. Meus pais me compreenderam e decidiram me apoiar na decisão. Hoje sou um músico feliz, sem medo de assumir a música na minha vida.

Publicado no jornal Visão do Vale em 20/11/2012

Um comentário:

  1. Colocar para fora,o mundo de dentro,dos sentimentos às razões ,demonstram a profundidade e imensidão de tua alma,a fertilidade de tua essência .Parabéns por tua construção.

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