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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Mudança


Vista aérea do morro Dois Irmão e Pedra da Gávea no Rio de Janeiro - Wendell Well

Esvaziar armários e encher caixas não é tarefa fácil para o coração. É uma renuncia forçada de toda história que deixamos acumulada junto com o pó dentro das nossas gavetas. Escolher quais dos pequenos tesouros devem continuar na família de tralhas e entulhos é um grande exercício para o desapego. É como transformar o passado em duas pilhas, uma para levar ao futuro, e outra para enviar para qualquer direção oposta.

Me lembro da minha primeira mudança. Era ainda muito criança para querer separar minhas preciosas tralhas, queria levar as gavetas inteiras para a nova casa. Mudar o mesmo quarto para um novo endereço. Minha maior preocupação era na verdade com os amigos. Quando somos crianças, somos obrigados a ter amigos que façam parte da nossa rotina. E eu tinha a tristeza de saber que os metros que uniam os laços de amizade entre eu e os meus amigos do bairro iriam se alargar e afrouxar junto com a distância que separaria nossas casas. Mas também sabia que o novo endereço era um ótimo pretexto para conhecer novos candidatos ao posto.

Talvez seja por isso que sempre me animei com as mudanças. Espero o novo como a fome espera a janta. Sou otimista. Gosto da sensação de desconforto da novidade. Gosto de descobrir. Tirar as peças de roupa para encontrar a pele. Me impressionar com cada pinta e mancha que eu ainda não conhecia.

A mudança é sempre uma chance de abrir novos espaços no coração. Esvaziar os armários, é permitir que novas vidas possam ganhar valor. Minha ultima mudança começou há alguns meses. Já não era mais criança e precisei limpar todas as minhas gavetas. Separei os meus tesouros. Reciclei o passado. Joguei fora o que não seria útil para ninguém, doei o que poderia encher as gavetas de alguém, e segurei tudo que eu ainda sei dar utilidade.

Dessa vez, não botei nada dentro de caixas. Não empacotei com plástico-bolha nenhum objeto. E nem me preocupei com os amigos, já aprendi que existe amizade que nem a distância afasta. Me resumi em apenas uma mala e um violão. Queria poder trazer mais, e fiquei feliz ao saber que o coração comporta muito mais do que os 23 quilos de bagagem permitidos pelo avião.

Depois de um bom tempo me mudando para quartos provisórios, finalmente estou deitado no meu colchão, no chão da sala do meu novo lar. Tenho o morro Dois Irmãos de pé do outro lado da janela, e as orlas do Leblon e de Ipanema deitadas lá em baixo, na beira do mar, tomando banho de sol e enfeitando o infinito de água salgada. Morava no alto da serra gaúcha, agora moro no alto do morro do Vidigal. Coincidência que provavelmente meu subconsciente fez força para acontecer.

Me sinto como quando era criança, na primeira mudança. O colchão no chão e a casa vazia. Esperando para ser preenchida com uma vida nova. Os interruptores me fazendo de bobo, trocando toda hora as próprias conexões elétricas só para me ver errar. A caixa térmica brincando de refrigerador, e a torradeira fingindo ser fogão. Toda mudança é igual. A casa nunca está pronta no momento em que você entra nela. É preciso encher com o presente, e acumular novas histórias.

Fico imaginando a intimidade que os antigos moradores tinham com as paredes e o piso. Qual será a soma de dedinhos do pé que já se chocaram nos cantos das portas desde o primeiro morador? Quantas brigas já começaram e já terminaram dentro dessas paredes? Quantos casos de amor aconteceram em baixo desse teto? Será que alguém deu os primeiros passos aqui? Quem escolheu a poesia que está escrita na parede?

Mesmo que pudessem, as paredes não contariam. Não por serem leais aos antigos moradores. Mas por serem leais aos novos. Somos nós que fazemos o lar, não é o lar que nos faz.

É como conhecer alguém novo. Nunca saberemos quantas vezes um sorriso apareceu nos lábios dessa pessoa, nem quantas lágrimas ela já derramou. Por mais que a nossa curiosidade insista no passado. As gavetas já foram limpas, já serviram para moldar o presente. E se somos o presente. É nossa função encher o coração de novas lembranças.

Crônica publicada no jornal Visão do Vale em 13/11/2012

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