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terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Desfocado



Arte: Vision - J Andrel

Não consigo lembrar-me da infância sem visualizar um par de óculos no meu rosto. Era meu companheiro. Meu tradutor. Sem ele, o mundo ficava distante. Indecifrável. Um sorriso era igual a uma lágrima. Uma bola era uma mancha branca borrada. E a televisão era arte abstrata moderna capaz de emitir sons. Eu vivia em dois mundos, e os óculos eram a minha ponte entre eles.

Eu era muito pequeno quando comecei a usar óculos. Tão pequeno, que a armação, que era mais da metade do meu rosto, era alvo do olhar penoso dos mais velhos. Eles achavam os dois fundos de garrafa que aprimoravam minha visão, um fardo muito grande para uma criança tão pequena carregar. Eu não me importava. Foi fácil botar os óculos na minha vida. Não bati pé. Nem fiz manha. Meu problema de visão sempre foi maior que a minha vaidade.

Usava as cordinhas na armação para ter certeza de que não os perderia. E quando eu os tirava, tentava memorizar o local exato de onde os havia deixado. Eu tinha que ficar esperto. A minha mistura de miopia com astigmatismo gostava de me confundir. Primeiro ela escondia os objetos pela casa, e as pessoas pela rua. Depois ria da minha cara quando eu passava um bom tempo procurando o que ela havia escondido logo na minha frente. Sempre me enganou. Mas, apesar de tudo. Nós nunca fomos inimigos.

Crescer com os óculos no rosto e um grande problema de visão nos olhos, me deixou desfocado do mundo. As lentes de vidro até foram capazes de me situar. Me aproximar do cotidiano de quem enxerga sem ajuda. Mas elas são muito seletivas. Focam apenas no centro, enquanto os olhos transformam o resto em um borrão distorcido.

É por isso que eu mergulhava nos livros. Eu podia enxergar o mundo das palavras como eu quisesse. Ninguém podia me dizer o que era certo ou errado na textura das paisagens, e nos traços dos personagens. Se no mundo real eu precisava usar minha imaginação para dar detalhes aos borrões, no mundo dos livros isso era uma obrigação.

Meu problema de visão me fez ter o desapego a estética material. Não dava importância para as imagens. Até hoje eu não sou capaz de decorar os formatos dos carros. Para mim, todos os carros têm um único nome. A diferença além do conforto, é que alguns gastam mais combustível do que os outros.

Eu até podia estar ali. Viver, tocar, e caminhar no mundo como qualquer pessoa. Mas meus olhos estavam sempre voltados para dentro. Focados nos meus pensamentos. Bolando teorias. Criando letras de música. Imaginando cenas. Não havia nenhuma distração com as grandes belezas do mundo. Os óculos me fizeram introspectivo, mesmo eu sendo uma pessoa extrovertida.

Aos 14 anos, ganhei minhas primeiras lentes de contato. Foi como ser sugado para o mundo real. Nunca esqueço a sensação. Me senti parte do grupo. Conectado com a distância. Me lembro de olhar para o horizonte pela primeira vez de verdade, e me perguntar se as pessoas entendiam a beleza daquilo tudo.

Tive que re-acostumar os meus olhos. Eles estavam tão viciados no chão, que ao enxergarem tantos detalhes de uma só vez, me deixaram tonto. Eu estava em êxtase. Aquele dia mudou meu mundo, eu troquei o desinteresse pela paixão. Conectei o meu interior com o exterior. E comecei a mergulhar nas texturas do mundo.

Ver. É inexplicável. É lindo. Os detalhes do tempo nos rostos e nas mãos. As linhas do horizonte. As estrelas em noite de céu limpo. O olhar que não necessita nem de palavras pra se comunicar. As árvores e o concreto. As pichações que assinam os muros. E até mesmo o lixo. Tudo vale a pena pela visão do mundo.

È claro que as lentes de contato não são iguais a uma visão perfeita. Elas secam, se deslocam, irritam, perdem o foco, e precisam ser guardadas a noite. Não vou negar que eu gostaria de não precisar das lentes para enxergar o mundo com qualidade. E que eu adoraria ver a lua pela janela quando acordo a noite. Mas sou muito agradecido a vida. Ela me deu o problema, e eu consegui entender o valor da beleza.

Eu ainda não associo o nome aos carros. Existem coisas mais bonitas para a visão decorar

Crônica publicada no jornal Visão do Vale em 11/12/12

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